Sonhando de olhos abertos

Ainda estamos em fase de apresentação, é somente o meu segundo post aqui, afinal. Então, decidi colocar um dos meus poemas favoritos e, com certeza, o que eu mais me identifico. Se chama ‘O menino que carregava água na peneira’, e o autor é o Manoel de Barros, também meu poeta favorito.

O que eu mais gosto na obra do Manoel é a atmosfera de sonho e os jogos de palavra que me lembram bastante o nonsense do Lewis Carroll, mas com elementos do pantanal que o tornam 100% brasileiro. É mágico aquele momento em que você percebe que o mundo das palavras é muito maior que o mundo real, e eu descobri isso lendo Carroll e Manoel de Barros. Um tem o Jaguadarte e o outro tem o abridor de amanhecer, os dois sonham de olhos abertos e me ensinaram que, como escritora, essa não é só a coisa mais sensata a fazer, mas o único caminho a ser seguido.

O menino que carregava água na peneira sou eu, e, quando eu li esse poema pela primeira vez, engasguei bem no meio de tão emocionada e feliz que fiquei ao perceber que alguém me entendia e que, quem sabe, alguém poderia me amar não apesar de, mas exatamente por isso.

 

O menino que carregava àgua na peneira

(Manoel de Barros)

Tenho um livro sobre águas e meninos.

Gostei mais de um menino que carregava água na peneira.

A mãe disse que carregar água na peneira era o mesmo que roubar um vento e sair correndo com ele para mostrar aos irmãos.

A mãe disse que era o mesmo que catar espinhos na água.

O mesmo que criar peixes no bolso.

O menino era ligado em despropósitos.

Quis montar os alicerces de uma casa sobre orvalhos.

A mãe reparou que o menino gostava mais do vazio do que do cheio.

Falava que os vazios são maiores e até infinitos.

Com o tempo aquele menino que era cismado e esquisito porque gostava de carregar água na peneira

Com o tempo descobriu que escrever seria o mesmo que carregar água na peneira.

No escrever o menino viu que era capaz de ser noviça, monge ou mendigo ao mesmo tempo.

O menino aprendeu a usar as palavras.

Viu que podia fazer peraltagens com as palavras.

E começou a fazer peraltagens.

Foi capaz de interromper o voo de um pássaro botando ponto final na frase.

Foi capaz de modificar a tarde botando uma chuva nela.

O menino fazia prodígios.

Até fez uma pedra dar flor!

A mãe reparava o menino com ternura.

A mãe falou: Meu filho você vai ser poeta.

Você vai carregar água na peneira a vida toda.

Você vai encher os vazios com as suas peraltagens.

E algumas pessoas vão te amar por seus despropósitos.

 

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2 thoughts on “Sonhando de olhos abertos

  1. Juliana Rabelo says:

    D: Que lindo!!!!!!!

    Não sei nem o que comentar…

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